quarta-feira, 16 de novembro de 2022

O Deus Mercado?

Semana de 07 a 13 de novembro de 2022

 

Lucas Milanez de Lima Almeida [i]

 

No sincretismo religioso, há diversas combinações de teísmos. Os politeístas acreditam na existência simultânea de várias divindades diferentes, cada qual com seus poderes, características e peculiaridades. Já para os monoteístas, há apenas uma divindade, que reúne todo o poder supremo. Em comum a todas elas, está o fato de que o(s) deus(es) deve(m) ser agradado(s) e seus ensinamentos praticados, caso contrário, alguém vai sofrer (seja com o mau humor da divindade, seja com o castigo ao pecador).

Normalmente, os rituais de conexão entre o divino e o secular ocorrem nos templos e são guiados por indivíduos que detêm conexão direta com a divindade em questão. Frequentemente, eles são os representantes do(s) deus(es) no plano terrestre, sua personificação. Eles são os sacerdotes. Por sua vez, esta conexão é adquirida a partir de uma estrutura complexa de tradições, o que forma a base de uma determinada religião.

Pois bem. É possível traçar um paralelo entre economia e a crença na existência de um poder supremo, um paralelo entre o capitalismo e a religião, apesar de serem coisas diferentes, e o primeiro ser mais poderoso que o segundo.

Muito se fala na existência de um “Deus Mercado”, que não deve ser contrariado. Porém, o mercado é apenas o “templo”, um local onde os indivíduos manifestam os anseios de algo que lhes é superior. Como todo templo, as vozes que mais ecoam são as dos sacerdotes, os quais personificam as vontades da divindade. De uma forma geral, as pessoas não precisam saber da existência desta entidade suprema que dita a forma como todos devem se comportar em sociedade. Na realidade, muitos de nós seguem suas leis sem sequer ter consciência disso.

Esse ser supremo que atualmente nos guia é o capital. Por isso que o sistema econômico atual é chamado de capitalismo (para mais detalhes sobre ele: link). A sua lei fundamental é a obtenção de lucro. Sem a apropriação privada do excedente alheio, não há capitalismo que funcione. Por sua vez, quem personifica o capital são os capitalistas, que chegaram a tal posto por mérito (a exceção) ou por herança (a regra).

Nesse contexto, correndo o risco de ser ainda mais simplista, podemos afirmar que o capitalismo se enquadraria no monoteísmo religioso. Mesmo assim, o capital é múltiplo, assume várias facetas e, por isso, tem sacerdotes das mais variadas ordens. Há aqueles que pregam que o capital só terá seus anseios atendidos se a economia for aberta ao mundo. Há quem defenda a produção local como o melhor para o capital. Há os que apelam para o aumento dos juros e para a carestia do Estado como formas de agradar a divindade suprema. Enfim, sejam industriais, comerciantes, banqueiros, financistas ou especuladores, os capitalistas encontram um meio de cumprir sua função.

O que vimos na semana passada, após a fala de Lula sobre a necessidade de incluir os pobres no orçamento, nada mais foi do que o capital dando sinais. Como toda a população do Brasil não cabe no orçamento público, o capital avisou que não quer abrir mão da sua parte. Por isso seus sacerdotes logo se apressaram em levar o recado aos leigos, demonstrando que o governo eleito e o povo não devem ousar lhe peitar.

Contudo, parece que o movimento ocorrido na semana passada não foi muito bem recebido pela opinião pública. Isto pode ser visto naquele que tem sido o maior instrumento de comunicação no Brasil atual. Não faltaram memes para manifestar a insatisfação popular com esse movimento feito no “mercado”, se bem que alguns analistas sérios também expressaram sua insatisfação publicamente.

O pior, porém, é que não há muito o que fazer. Como vimos nessa campanha de 2022, foi muito ampla a aliança para acabar com o melhor representante do diabo na história do Brasil. Claro, este apoio não viria de graça, pois o capital se parece com o deus cristão do velho testamento. A equipe de transição já está recheada de pessoas que vão garantir a paz capitalista, desde as pastas da área econômica até a da educação.

E nem adianta rezar, na economia não tem milagre. Só a luta nossa de cada dia poderá nos salvar.


[i] Professor do DRI/UFPB e do PPGRI/UEPB; Coordenador do PROGEB. (@progebufpb, www.progeb.blogspot.com; lucasmilanez@hotmail.com). Colaboraram os pesquisadores: Guilherme de Paula, Mariana Tavares e Nertan Gonçalves.

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