quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Superávit primário de estados e municípios em 2021, para quê?

Semana de 31 de janeiro a 06 de fevereiro de 2022

 

Lucas Milanez de Lima Almeida [i]

 

A regra é simples: quem deve, tem que pagar. E como ex-colônia que nunca conseguiu superar as cicatrizes e feridas abertas do passado, o Brasil sempre deveu muito na praça. E nos tempos atuais, mais do que no passado, o endividamento de entes públicos é uma das principais formas de se manter a sangria de um povo. Mas, infelizmente, não é a única.

Já foi falado muitas vezes nesta coluna o quanto os preços das coisas estão subindo. Na realidade, nem precisava escrever. Todos estamos sentindo no bolso. Dentre as coisas que estão mais caras, os alimentos são as que trazem maiores danos sociais. Segundo um estudo do DIEESE para janeiro de 2022, de 17 capitais analisadas, em 12 a cesta básica custou mais da metade do novo salário mínio (que é de R$ 1.212,00). Em pior posição está São Paulo, com 63,7% do salário, enquanto em Aracaju a cesta básica custou 45,3% do salário. Ainda segundo o estudo, o tempo de trabalho médio para comprar os itens básicos para sua sobrevivência em janeiro foi de 112 horas e 20 minutos.

Em 2021, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) divulgou estudo mostrando que 55,2% das residências brasileiras passaram por alguma dificuldade para obter alimentos de forma plena e regular. Em outras palavras, 116,8 milhões de brasileiros estavam em algum grau de insegurança alimentar. Desses, 43,4 milhões não tinham acesso à quantidade suficiente de alimentos e 19 milhões passavam fome.

Em estudo mais recente, com 1.343 pessoas beneficiárias do Bolsa Família, o Unicef mostrou que 72% das suas crianças menores de 6 anos não comeram alguma refeição ou comeram menos do que o necessário devido a Pandemia. Antes o número já era alto, de 52%. Além disso, diante de “vantagens” como sabor, preço e praticidade, sempre há o risco do aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, mas de baixo valor nutricional, tais como biscoito recheado, bebidas açucaradas e achocolatados. Nessa pesquisa, em torno de 80% das famílias afirmaram ter alimentados seus filhos com algum ultraprocessados no dia anterior à entrevista.

Saída para isso há, mas aí passa pelo poder público. Programas, projetos, parcerias, financiamento de iniciativas populares, etc. são os meios pelos quais o Estado pode atuar em favor da segurança alimentar. Até já existiu um Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), mas foi extinto no primeiro dia de governo do atual presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro.

Para além da falta de preocupação com a barriga vazia alheia, tais medidas contribuem para pôr em prática o ideário de que o Estado deve reduzir seus gastos, custe o que custar (vide o teto dos gastos, apesar deste ter sido furado por Paulo Guedes). O objetivo é, voltando ao começo da conversa, pagar (ao menos tentar) a dívida dos entes da esfera pública. É deixar de gastar com uma coisa para pagar outra. A maior parte dos brasileiros sabemos o que é isso. É uma questão de prioridade, pagar o mercado, ao invés de comprar uma roupa, ter feijão, ao invés de tomar banho morno... Fazer superávit primário é deixar de gastar em algum canto para pagar os juros e, quem sabe, a amortização da dívida pública.

Esse é o contexto no qual podemos nos perguntar: diante desse cenário de fome, desemprego, inflação e pandemia, por que os estados e municípios resolveram economizar, juntos, R$ 97,7 bilhões? Por que não utilizaram grande parte desta verba já em 2021 para melhorar a situação da sua população?

O que já se sabe é que uma parte foi para pagar os juros e amortização de dívidas. Outra, muito maior, entrou no caixa. Sabendo que 2022 é ano de eleição, sugiro que estejamos de olhos bem abertos para os gastos eleitorais esse ano. A indústria da fome foi fomentada em 2021. Preparemo-nos para ver ela sendo explorada em 2022...


[i] Professor do Departamento de Relações Internacionais da UFPB e Coordenador do PROGEB – Projeto Globalização e Crise na Economia Brasileira. (www.progeb.blogspot.com; lucasmilanez@hotmail.com). Colaboraram os pesquisadores: Nertan Gonçalves, Guilherme de Paula, Carolina Nantua e Maria Cecilia Fernandes.

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