quinta-feira, 20 de abril de 2023

Moeda comum: mero devaneio?

Semana de 10 a 16 de abril de 2023

 

Lucas Milanez de Lima Almeida [i]

 

O caro leitor certamente acompanha a enxurrada de críticas que o presidente Lula vem recebendo por seus posicionamentos sobre o cenário internacional. Desde a visita à China aos comentários sobre a guerra da Ucrânia, não faltam “especialistas” para criticar o que ele tem dito. Dentre todos os temas que chamaram a atenção na última semana, abordaremos a “proposta” do uso de uma moeda comum nas relações comerciais entre os BRICS (o que já foi aventado para a Argentina).

Hoje, a única moeda que é aceita pelos países em suas transações internacionais é o dólar. Por isso, todos precisam encontrar formas de obtê-lo para pagar aquilo que adquiriram de outros países, sejam bens, serviços ou mesmo pagar pelo uso do capital estrangeiro investido ali (remessa de lucro, juros, dividendos etc.). Sabemos que os EUA podem, em última instância, imprimir esse dinheiro (como fizeram no pós-2ª Guerra). O resto do mundo, não. Mas, mesmo para eles, a principal maneira de se obter dólares é através das exportações de bens e serviços. A segunda maneira é com os investimentos estrangeiros, que entram nos países em busca de ganhos de curto, médio e longo prazos. Outro meio para obter dólares surge quando as empresas multinacionais repatriam, para suas matrizes, os ganhos obtidos em suas filiais ao redor do mundo.

Os países centrais, aqueles que são grandes exportadores, que sediam grande quantidade de empresas multinacionais e que são muito atrativos para os investimentos estrangeiros, não enfrentam dificuldades em obter os dólares que precisam para suas transações internacionais. Já os países periféricos não têm essas três características ao mesmo tempo (principalmente a primeira e a segunda) e sofrem daquilo que chamamos de vulnerabilidade externa estrutural: sua estrutura econômica interna é tão débil que eles dependem do capital estrangeiro para funcionar, mas não têm fontes seguras de dólares para manterem-se nos trilhos.

É justamente neste ponto que entra a proposta de utilizar outra moeda na realização das transações comerciais entre países atrasados, como é o caso de quase todos dos BRICS (no caso da China, sua participação numa moeda comum está mais para uma disputa de hegemonia com os EUA do que uma necessidade). Isto facilitaria muito o comércio entre os países periféricos, já que eles têm dificuldade de obter dólares. Por meio de uma moeda emitida através de acordos bi ou multilaterais, dos quais seriam parte ativa, um país periférico não precisaria mais de dólares para suas transações com os demais países do acordo.

A questão é que um país periférico, a exemplo do Brasil, não se relaciona apenas com Rússia, Índia, China e África do Sul. Por exemplo, compramos muitos produtos do Mercosul, dos EUA e da Europa. Para essas transações precisaríamos de dólares, pois a moeda comum só serviria entre os BRICS. Por exemplo, nosso saldo comercial com a China em 2021 foi de quase US$ 35 bilhões. Se fosse na moeda comum, o Brasil não teria esse valor imediatamente. Teria que utilizar a “autoridade monetária” que resguardaria a moeda comum e, através dela, converter o saldo para o dólar. Essa instituição provavelmente seria o Banco dos BRICS.

E é aí que está o problema. Para execução desta ideia, seria necessário um desenho monetário e financeiro robusto e com papel ativo (até mesmo generoso) das economias mais fortes dos BRICS. Assim, surge a questão: esse desenho iria reproduzir as características dos atuais sistemas monetário e financeiro internacionais, principalmente sua lógica de ganhos especulativos, de curto prazo e de cooptação do orçamento estatal? Esse padrão de ordem neoliberal já se mostrou perverso para o Brasil. Porém, será que um novo arranjo seria proposto, que pudesse mesclar elementos do controle chinês do setor financeiro com as necessidades de financiamento dos demais países, objetivando reduzir a vulnerabilidade externa dos parceiros? Mesmo neste cenário, certamente ainda teríamos uma potência hegemônica liderando o processo. Resta saber se vale a pena brigar por uma nova e melhor realidade (mero devaneio) ou se devemos ficar no mais do mesmo.


[i] Professor do DRI/UFPB, PPGCPRI/UFPB e PPGRI/UEPB. Coordenador do PROGEB (@progebufpb, www.progeb.blogspot.com; lucasmilanez@hotmail.com). Colaboraram os pesquisadores: Guilherme de Paula, Helen Tomaz, Thomaz Cisneros, Letícia Rocha e Raquel Lima.

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