Há praticamente duas semanas, um fato ocorrido na economia norte-americana mostrou como, numa sociedade baseada em classes que lutam pela divisão do excedente, a mobilização de uma delas pode trazer-lhe muitos benefícios. O critério para a distribuição deste benefício é a posição desta classe em relação à propriedade dos meios de produção. Como o Estado e o aparelho jurídico que o suporta beneficiam, quase sempre as elites detentoras do poder econômico, aos não-proprietários resta apenas a capacidade da mobilização, na tentativa de melhorar suas condições de vida e sua participação na distribuição do excedente.
Nos dias atuais, verifica-se que no orçamento deste ano, o governo dos EUA tinha uma proposta de cortar US$ 9,7 bilhões de dólares em subsídios aos fazendeiros com faturamento anual superior a US$ 500 mil. Estes subsídios são concedidos para amenizar as oscilações de preço (mesmo que não ocorram), e para enfrentar imprevistos (ainda que não aconteçam). Pois bem, a proposta de Obama sequer foi à votação, pois foi retirada do texto que iria ser submetido ao Senado e à Câmara, por políticos democratas e republicanos de Estados do Meio-Oeste do país, que reúnem grande parte da produção agrícola dos Estados Unidos. Estes parlamentares agiram por pressão dos seus eleitores, mas principalmente por lobby de um sindicato que representa 250 mil famílias de fazendeiros, o National Farmers Union.
O poder desta classe tem por base a existência de um sindicato extremamente representativo e atuante e a capacidade de eleger políticos comprometidos com seus interesses. Veja-se que a retirada do texto que propunha o fim do subsídio foi realizada por políticos republicanos e democratas.
A crise continua e o resultado da indústria brasileira no primeiro bimestre do ano, mostra de forma clara seu agravamento, apesar das medidas já tomadas pelo Governo para contê-la. Em janeiro e fevereiro, a indústria registrou queda no faturamento (10,9%), no emprego (0,9%) e nas horas trabalhadas (7,8%), em relação ao mesmo período de 2008, conforme dados da Confederação Nacional das Indústrias – CNI. Estes resultados são os piores da série histórica da entidade, iniciada em 2003.
Segundo Flávio Castelo Branco, economista-chefe da instituição, a indústria precisa crescer 9,3%, nos próximos 10 meses, para fechar o ano no “zero a zero”: “Não vou dizer que o ano está perdido, pois pode haver uma recuperação no segundo semestre. A situação não está em processo de agravamento, mas está em um nível deprimido, que, se mantido até o fim do ano, será um desastre".
Além do resultado da indústria, o comércio exterior também demonstra enfraquecimento. A queda na demanda externa e a escassez de crédito afetam negativamente as exportações de bens industrializados. Um levantamento feito pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro – Firjan concluiu que o percentual exportado da indústria de transformação nacional caiu para 21,9% do volume produzido, no final de 2008. Lembre-se que, no período entre 2003 e 2007, este percentual alcançava 24,1%, chegando ao valor recorde de 25,2%, no ano de 2005.
No mercado de trabalho, a situação também é de quedas sucessivas nos postos de trabalho. Desde setembro, quando a crise decisivamente atingiu a economia brasileira, já foram perdidos quase 800 mil empregos.
Outro indício sinalizador de preocupações consiste no comportamento dos preços, em queda. Da mesma forma que a inflação é um problema, a deflação também denota desequilíbrio. Sendo o preço uma variável crucial para as empresas, tendo em vista que suas receitas são constituídas pelas quantidades vendidas multiplicadas pelo preço cobrado, o que pensar da situação econômica quando as empresas reduzem os preços ou deixam de repassar para estes aumentos nos custos de produção? No mínimo que não estão conseguindo vender. Pois bem, o IGP-DI (Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna) teve deflação de 0,84%, em março, após uma deflação de 0,13%, em fevereiro, conforme divulgou a FGV (Fundação Getulio Vargas). A queda é a maior desde setembro de 1995, quando o índice sofreu retração de 1,08%.
A inflação medida pelo IPCA, no primeiro trimestre de 2009, foi a menor em 9 anos, ficando em 1,23%. Em março, o índice fechou com alta de 0,2%, taxa mensal mais baixa desde setembro de 2007. Segundo o IBGE, o resultado comprova a desaceleração da economia, com uma "influência tímida" do dólar nos eletrodomésticos.
Segundo Eulina Nunes dos Santos, coordenadora de Índices de Preços do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, a inflação foi influenciada pela alta nos preços de ônibus urbanos, em janeiro, pelos reajustes aplicados, em fevereiro, nas matrículas e mensalidades escolares e pela alta sazonal de produtos alimentícios. Por outro lado, produtos de peso como arroz (-3,87%), feijão-carioca (-12,92%) e carnes (-4,70%) ficaram mais baratos no trimestre.
Se, de um lado, a inflação mais baixa abre espaço para mais cortes de juros pelo Banco Central, de outro, analistas destacam que o nível mais baixo dos índices está ligado a uma queda da atividade econômica. Certamente, se o cenário não fosse de crise, a desvalorização cambial teria repercutido de forma significativa sobre os preços.
Diante da situação, o Governo já tomou uma série de medidas de política expansionista, com vistas a manter a demanda e o crédito. Contudo, a divulgação dos dados não demonstra os resultados esperados. Além da isenção de impostos concedida às indústrias automobilística, de motocicletas e de material de construção, o Governo planeja tomar as seguintes medidas no tocante ao enfrentamento da atual crise:
- Estender a isenção do IPI, reduzindo-o ou zerando-o, para a linha branca (geladeiras, fogões, máquinas de lavar e tanquinhos). Atualmente, as alíquotas cobradas sobre esses produtos vão de 5%, no caso dos fogões, até 20% para máquinas de lavar. Levantamentos preliminares da área econômica mostram que cada ponto percentual de corte no IPI de geladeiras, por exemplo, custará ao governo R$ 39 milhões ao ano;
- Desonerar a folha de pagamento. As empresas devem cortar até 20% da jornada de trabalho sem redução de salário e em troca teriam uma redução, de 30% para 19%, do recolhimento de tributos cobrados sobre a folha salarial. A queda seria através da cobrança do FGTS e da alíquota do sistema S. Para ser beneficiada com a isenção, a empresa não pode demitir e a fiscalização será feita pelas centrais sindicais. O Governo alega que tal medida custaria menos do que o pagamento de seguro-desemprego, que cresce na medida em que as empresas vão cortando postos de trabalho;
- Por fim, está em debate a possibilidade de reduzir o superávit primário, que consiste na economia feita pelo Governo para pagar os juros da dívida. De fato, esta é a medida mais surpreendente, pois desde o Governo de Fernando Henrique Cardoso a economia para pagar os juros só vem crescendo e é tida como a prioridade da política econômica. Reduzem-se as verbas para qualquer coisa até para saúde e educação, menos para o pagamento dos juros. Isto demonstra o tamanho da preocupação do Governo com as conseqüências desta crise para a economia do país e, principalmente, para a sua popularidade que já caiu 5 pontos percentuais com o agravamento da situação.
Para reduzir o superávit primário pretende-se, em 2010, retirar a Petrobrás do cálculo. Se isto ocorrer, embora a meta oficial continue em 3,8% do PIB, na prática ela estará sendo reduzida para 2,8%. Para se ter uma idéia da importância da Petrobrás, neste ano de 2009, a empresa deveria colaborar com R$
14,9 bilhões na composição do superávit.
Na verdade, a equipe econômica levanta a possibilidade de excluir todas as estatais do cálculo do superávit, o que o reduziria para 2,3% do PIB, ou seja, uma redução ainda maior.
A gestão da dívida pública no Brasil constitui um dos maiores entraves ao crescimento econômico do país e, no contexto de crise, a situação tende a se agravar. Os elevados superávits primários para pagar os juros, que aumentam em progressão quase geométrica pelo fato do Brasil praticar há muitos anos a maior taxa de juros do mundo, comprometem uma parte significativa da arrecadação. Com as tímidas reduções previstas na Selic em 2009 o Governo economizará em torno de R$ 15 bilhões no pagamento de juros da dívida.
Esta questão do juro no Brasil é muito séria, pois o sistema financeiro nacional promove uma descarada extorsão tanto ao setor privado (empresas e consumidores) quanto ao setor público, em função das taxas de juros que cobra. Um estudo do IPEA revela o problema. O juro praticado por bancos estrangeiros no Brasil chega a ser até dez vezes maior que o juro cobrado por essas mesmas instituições financeiras em seus países de origem. O instituto investigou alguns dos bancos estrangeiros de maior porte estabelecidos no país: HSBC, Santander e Citibank. No caso dos empréstimos pessoais, o britânico HSBC pratica uma taxa de juro de 6,60% ao ano no Reino Unido, enquanto oferece juros de 63,42% ao ano para os brasileiros; o espanhol Santander oferece aos clientes do seu país sede juros de 10,81% ao ano mas pratica juros de 55,74% ao ano por aqui; o americano Citibank empresta a juros de 7,28% ao ano nos Estados Unidos, enquanto opera com taxas de 60,84% ao ano em território brasileiro.
Para chegar a esses números, a equipe de pesquisadores do IPEA levou em conta os juros oferecidos na primeira semana de abril deste ano, bem como os juros agregados aos serviços administrativos, riscos de inadimplência, margem de lucro e tributação.
O lamentável é saber que o Governo está fazendo política de isenção de impostos, para uma série de bens, a fim de estimular o consumo, mas nada faz para baixar os juros contribuindo para a prática desleal dos bancos com a sociedade brasileira.
Para compensar a política de isenção, o Governo planeja elevar impostos em outros produtos. Além do aumento de alíquota para cigarros, já sancionada, planeja-se inflar a cobrança de tributos nas bebidas e cosméticos. A receita do Governo caiu 27%, em fevereiro de 2009, ante o mesmo mês de 2008, em função da queda na arrecadação provocada pela diminuição no ritmo da atividade e pelo efeito das isenções já concedidas.
As medidas de isenção tomadas pelo Governo têm penalizado fortemente os governos e prefeituras, principalmente os de unidades menores, em função da dependência de recursos repassados pelo Governo Federal através dos fundos. Prefeitos e governadores têm desaprovado as medidas e já exigem do Governo Federal uma forma de compensar as perdas obtidas.
As conseqüências negativas do processo de privatização efetuado no país desde o Governo Collor dão mais um de seus sinais. Quando as empresas que produziam bens estratégicos ao crescimento do país como energia, aço, comunicação, etc., eram estatais, em um momento de crise, os aumentos de custos não eram repassados aos preços cobrados a fim de evitar um agravamento na atividade econômica. Mas, com as empresas privatizadas, a lógica da iniciativa privada impera, de modo que as empresas precisam ter a garantia do lucro para continuar ofertando os bens. Como são bens prioritários, que não podem simplesmente deixar de ser ofertados, as agências reguladoras precisam assegurar as margens de lucratividade.
Em função disto, em meio à tragédia nos indicadores econômicos já divulgados neste ano, a energia subiu mais de 20% em São Paulo. Para o consumo residencial, o aumento foi 20,19% e para a indústria chegou a 24,8%. As distribuidoras afirmam que o aumento nos custos foi causado pela alta do dólar e pelo maior uso de termelétricas, que são mais caras, pois necessitam da queima de combustíveis fósseis para produzir energia.
Representantes de grandes consumidores de energia, como indústria e comércio, alegam que o reajuste da energia elétrica aprovado pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) diminuirá a competitividade das empresas brasileiras e pode provocar demissões.
De acordo com a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), a economia da América Latina e do Caribe cairá 0,3% em 2009, na primeira recessão após seis anos de crescimento. A previsão da Cepal, que revisou estimativas diante dos maus resultados registrados na região, no último trimestre de 2008, projeta uma taxa de desemprego regional em 9%, neste ano, ante 7,5%, em 2008, elevando a informalidade e a pobreza.
Para a Comissão, o Brasil será um dos mais afetados, com queda de 1% no PIB, atrás apenas do México (-2%). Pela estimativa de dezembro, o país cresceria 2,1%, neste ano, mais do que a média regional, avaliada então em 1,9%.
Para Osvaldo Kacef, diretor de Desenvolvimento Econômico da Cepal, a previsão de baixa de 1% no PIB é otimista, por considerar uma recuperação da economia, no segundo semestre: "Se o Brasil mantiver o ritmo do final de 2008, cairá 1,5% em 2009". O desempenho do PIB no quarto trimestre de 2008 (retração de 3,6% ante o trimestre anterior) foi decisivo para a revisão da estimativa.
A Cepal avalia que a região está mais preparada para os impactos financeiros da crise global, por ter acumulado reservas e reduzido dívidas, só não imaginava que os efeitos reais chegariam tão rápido. De acordo com Osvaldo Kacef: "Normalmente os impactos financeiros se sentem primeiro. Como a região está mais sólida, pensávamos que os efeitos iniciais da crise não seriam fortes, mas a economia real já foi atingida".
Nos Estados Unidos, a crise não dá tréguas e as políticas adotadas, embora não tenham o resultado desejado, continuam elevando o déficit fiscal do Governo. O déficit orçamentário dos Estados Unidos, em março, subiu mais do que o previsto e o acumulado no exercício fiscal em curso, iniciado em outubro do ano passado, atingiu um novo recorde de quase US$ 1 trilhão.
A expectativa dos analistas era de um déficit de US$ 160 bilhões para o mês de março. No primeiro semestre do exercício 2008-2009, o orçamento acumulou seis meses seguidos de déficit, o que não acontecia desde o exercício 2003-2004. O déficit acumulado no período mencionado subiu para US$ 956,799 bilhões, uma quantia duas vezes superior a de um ano atrás, segundo os números publicados pelo departamento do Tesouro.
Enquanto o déficit sofreu aumento recorde, o déficit comercial dos Estados Unidos é o menor em dez anos, puxado por um leve avanço nas exportações e pela sétima queda mensal das importações, por conta do esfriamento da economia. A desvalorização mundial do dólar está prejudicando várias economias e o aumento das exportações norte-americanas evidencia este fato.
Reflexo disto é o desempenho das exportações chinesas. Pelo quinto mês consecutivo as vendas da China ao resto do mundo sofreram retração e caíram 17,1%, em março de 2009, em relação ao mesmo mês, de 2008. Como a queda efetiva foi menor do que a prevista alguns analistas viram o resultado como positivo e sinal de melhora. A questão é saber: melhora de quê? A prova de que o erro na estimativa da queda não representa melhora nenhuma é dada pelo resultado das importações que caíram mais que as exportações, em 25,1%, em relação a março do ano passado, em um movimento mais acentuado do que o previsto, o que resultou na ampliação do superávit de US$ 4,8 bilhões em fevereiro para US$ 18,6 bilhões em março.
A China lançou, no final do ano passado, um pacote de US$ 585 bilhões, reduziu a taxa de juros e induziu bancos estatais a elevarem os níveis de crédito, o que levou a um aumento expressivo no nível dos empréstimos neste ano. Apesar de todo este esforço, a atividade econômica não reagiu conforme se esperava.
De acordo com projeções de economistas independentes, a economia chinesa deve apresentar neste ano crescimento entre 5,5% e 8%. Se confirmado, o resultado ficará bem abaixo dos 9% em 2008 e dos 13% em 2007.
Os dados da semana nos mostram, portanto, que, tanto a nível nacional como internacional, o cenário de crise se mantêm e continua a se expandir.
Texto escrito por:
Águida Cristina Santos Almeida: Professora do Departamento de Economia e Finanças da Universidade Federal de Campina Grande - UFCG e integrante do PROGEB – Projeto Globalização e Crise na Economia Brasileira.
progeb@ccsa.ufpb.br
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