quarta-feira, 13 de maio de 2020

CNPJ versus CPF


Semana de 04 a 10 de maio de 2020

Lucas Milanez de Lima Almeida [i]

Quem não viu, a estapafúrdia visita de Bolsonaro, ministros e uma comitiva de empresários ao presidente do STF na semana passada? Mais do que uma tentativa de intimidar um dos corroídos pilares da nossa frágil República, ou uma demonstração de estupidez frente à pandemia, o ato mostra quais interesses o atual governo representa.
Antes de tratar tal fato, gostaria de limpar a poeira de um velho debate que surgiu nas ciências sociais na década de 1960, quando o trabalhador passou a ser chamado por alguns de capital humano. O termo parece inocente. Enaltecedor, talvez. Mas na realidade traz uma carga ideológica e desumanizadora ao trabalhador.
Uma das primeiras consequências dessa nova alcunha é que numa relação entre trabalhadores e patrões, não se encontram mais duas pessoas de distintas classes. Antes, no jargão “chulo-esquerdista”, era negociação entre burguesia e proletariado. Agora, dois capitalistas se encontrariam no mercado e negociariam cada um o seu capital. Desapareceria, assim, a diferença entre operário e capitalista, sendo todos capitalistas.
É dessa aparente igualdade que surge um segundo elemento: a contratação do trabalhador surgiria como uma relação entre pares, que detêm iguais condições de negociação. Isto porque, como se disse, cada um ofereceria um tipo de capital ao negócio a ser empreendido: o trabalhador, o capital humano e o patrão, o capital físico/monetário.
A dura realidade do Brasil hoje mostra que isto permeia a cabeça do empresariado (e alguns economistas de fé), mas não é a realidade vivida pela maioria.
Na referida invasão ao STF, o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), Synésio Batista Costa, disse que haveria “morte de CNPJ”, caso as medidas de isolamento não fossem afrouxadas. Segundo ele, fazendo menção aos 100% de uso da capacidade da atividade industrial, seu “coração” estava “batendo a 40”. Já Marco Polo de Mello Lopes, da Coalizão Indústria, disse que o setor “está na UTI”.
Seria necessário mencionar, aqui, que quem vai parar na UTI, de fato, são pessoas? Que em estados como AM, CE, MA, PA, PE, RJ e SP a lotação das UTIs está acima dos 80%? Que morreram mais de 10 mil de todos os níveis de renda, mas mais ainda aqueles que não têm acesso ao privilegiado fornecimento de UTIs particulares?
Acho que isso é o óbvio e não precisa ser lembrado. Mas a burguesia nacional vive demonstrando que está pouco se lixando para a grande massa da população. E, como demonstrado na invasão já citada, utilizarão qualquer recurso para pressionar as instituições que poderiam garantir um mínimo de civilidade. Amparados pela maldade travestida de demência de Jair Bolsonaro, o desejo desses cidadãos é que os ditos CPFs paguem o preço máximo da sua própria vida para que os CNPJs “não morram”. O que falta dizer é que, caso o CNPJ “morra”, ainda restará um CPF vivo, pois a empresa pode até morrer, mas o empresário falido ainda vai viver. Os CPFs sacrificados, não.
É aqui que vemos a diferença fundamental que bota abaixo a teoria do capital humano: o empresário sobreviveria sem seu capital, enquanto o trabalhador, não. Por isso mesmo, cenas como a de trabalhadores ajoelhados nas calçadas implorando pela reabertura do comércio são vistas (caso de Campina Grande que já é alvo de investigação do Ministério Público do Trabalho por coação). Se tivessem a chance de viver do seu “capital”, não estariam sujeitos a isso.
E é aqui que entra o Estado como mediador dos conflitos sociais. Deveria proteger a classe vulnerável da pressão de morte empresarial. Como? Fazendo funcionar a distribuição do auxílio ao mais necessitados, por exemplo. Não medir esforços para garantir a vida. Só a ação estatal, que resulta de ações coletivas, pode fazer isso.
Com todos os pesados pesares que possamos elencar, têm sido a estrutura institucional do Estado brasileiro a criadora de barreiras para que certas atrocidades não aconteçam. Porém, vivemos numa sociedade capitalista, e o Estado não está alheio a isso. Será, que nossa frágil República aguenta as pressões da crise, agravada pelo covid-19?

[i] Professor do Departamento de Economia da UFPB e Coordenador do PROGEB – Projeto Globalização e Crise na Economia Brasileira. (www.progeb.blogspot.com; lucasmilanez@hotmail.com). Colaboraram os pesquisadores: Ingrid Trindade, Matheus Quaresma e Monik Helen.

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