Semana de 04 a 10 de maio de 2020
Lucas Milanez de Lima
Almeida [i]
Quem não viu, a estapafúrdia visita de Bolsonaro,
ministros e uma comitiva de empresários ao presidente do STF na semana passada?
Mais do que uma tentativa de intimidar um dos corroídos pilares da nossa frágil
República, ou uma demonstração de estupidez frente à pandemia, o ato mostra
quais interesses o atual governo representa.
Antes de tratar tal fato, gostaria de limpar a
poeira de um velho debate que surgiu nas ciências sociais na década de 1960,
quando o trabalhador passou a ser chamado por alguns de capital humano. O termo
parece inocente. Enaltecedor, talvez. Mas na realidade traz uma carga
ideológica e desumanizadora ao trabalhador.
Uma das primeiras consequências dessa nova alcunha é
que numa relação entre trabalhadores e patrões, não se encontram mais duas
pessoas de distintas classes. Antes, no jargão “chulo-esquerdista”, era
negociação entre burguesia e proletariado. Agora, dois capitalistas se
encontrariam no mercado e negociariam cada um o seu capital. Desapareceria,
assim, a diferença entre operário e capitalista, sendo todos capitalistas.
É dessa aparente igualdade que surge um segundo
elemento: a contratação do trabalhador surgiria como uma relação entre pares,
que detêm iguais condições de negociação. Isto porque, como se disse, cada um
ofereceria um tipo de capital ao negócio a ser empreendido: o trabalhador, o capital
humano e o patrão, o capital físico/monetário.
A dura realidade do Brasil hoje mostra que isto
permeia a cabeça do empresariado (e alguns economistas de fé), mas não é a
realidade vivida pela maioria.
Na referida invasão ao STF, o presidente da Associação
Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), Synésio Batista Costa, disse
que haveria “morte de CNPJ”, caso as medidas de isolamento não fossem
afrouxadas. Segundo ele, fazendo menção aos 100% de uso da capacidade da
atividade industrial, seu “coração” estava “batendo a 40”. Já Marco Polo de
Mello Lopes, da Coalizão Indústria, disse que o setor “está na UTI”.
Seria necessário mencionar, aqui, que quem vai parar
na UTI, de fato, são pessoas? Que em estados como AM, CE, MA, PA, PE, RJ e SP a
lotação das UTIs está acima dos 80%? Que morreram mais de 10 mil de todos os
níveis de renda, mas mais ainda aqueles que não têm acesso ao privilegiado
fornecimento de UTIs particulares?
Acho que isso é o óbvio e não precisa ser lembrado.
Mas a burguesia nacional vive demonstrando que está pouco se lixando para a
grande massa da população. E, como demonstrado na invasão já citada, utilizarão
qualquer recurso para pressionar as instituições que poderiam garantir um
mínimo de civilidade. Amparados pela maldade travestida de demência de Jair
Bolsonaro, o desejo desses cidadãos é que os ditos CPFs paguem o preço máximo
da sua própria vida para que os CNPJs “não morram”. O que falta dizer é que,
caso o CNPJ “morra”, ainda restará um CPF vivo, pois a empresa pode até morrer,
mas o empresário falido ainda vai viver. Os CPFs sacrificados, não.
É aqui que vemos a diferença fundamental que bota
abaixo a teoria do capital humano: o empresário sobreviveria sem seu capital,
enquanto o trabalhador, não. Por isso mesmo, cenas como a de trabalhadores
ajoelhados nas calçadas implorando pela reabertura do comércio são vistas (caso
de Campina Grande que já é alvo de investigação do Ministério Público do
Trabalho por coação). Se tivessem a chance de viver do seu “capital”, não
estariam sujeitos a isso.
E é aqui que entra o Estado como mediador dos
conflitos sociais. Deveria proteger a classe vulnerável da pressão de morte
empresarial. Como? Fazendo funcionar a distribuição do auxílio ao mais
necessitados, por exemplo. Não medir esforços para garantir a vida. Só a ação
estatal, que resulta de ações coletivas, pode fazer isso.
Com todos os pesados pesares que possamos elencar,
têm sido a estrutura institucional do Estado brasileiro a criadora de barreiras
para que certas atrocidades não aconteçam. Porém, vivemos numa sociedade
capitalista, e o Estado não está alheio a isso. Será, que nossa frágil
República aguenta as pressões da crise, agravada pelo covid-19?
[i] Professor
do Departamento de Economia da UFPB e Coordenador do PROGEB – Projeto
Globalização e Crise na Economia Brasileira. (www.progeb.blogspot.com; lucasmilanez@hotmail.com).
Colaboraram os pesquisadores: Ingrid Trindade, Matheus Quaresma e Monik Helen.
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