Semana de 01 a 07 de junho de 2020
Lucas Milanez de Lima
Almeida [i]
Se uma pessoa fosse questionada sobre quais as
principais formas de mentir, certamente a resposta seria: através da linguagem
escrita ou falada. No caso do Brasil, isso se daria através da linguagem que se
convencionou chamar de “português”. Seria possível enumerar as mais diversas
maneiras de usar as palavras para contar uma mentira. Entretanto, a coisa muda
quando questionamos as chances dos números mentirem.
Não é difícil de ouvir por aí que os dados não
mentem. Está no senso comum. A ideia de que os números são “frios” e isentos de
uma carga “ideológica” também é bastante difundida entre muitos cientistas
sociais. Contudo, a coisa não é bem assim.
Os algarismos arábicos (os números de 0 a 9 e suas
combinações) nada mais são do que parte de uma linguagem que expressa
determinada coisa do mundo real. Por exemplo, se buscarmos o significado da
palavra casa, no Google, o primeiro que vai aparecer é: “edifício de formatos e
tamanhos variados, de um ou dois andares, quase sempre destinado à habitação”.
Esse é um exemplo de como uma linguagem, o português, é utilizado para nos
comunicarmos. Agora, se quisermos tratar de mais de uma casa, unimos ao
português uma outra linguagem: a linguagem matemática.
Essa linguagem, porém, não se limita à representação
imediata de coisas concretas. Ela também serve para representar determinadas
mudanças ou padrões dessas coisas. Por exemplo, tal como nossos professores do
ensino infantil ensinaram: se temos cinco maçãs e comemos duas, com quantas
ficamos? Pela linguagem matemática, temos: 5 – 2 = 3. Poderíamos dificultar um
pouco mais os exemplos, mas deixa para outra oportunidade.
O que importa é entender que, de fato, os números
são uma parte daquilo que chamamos de linguagem matemática. Contudo, como toda
representação da realidade, ela pode ser enganosa. A questão é: como saber se
os dados que são fornecidos oficialmente por um governo ou entidade
internacional, por exemplo, condizem com a realidade ou não? A resposta é
complexa e só a ciência pode dar...
Em cada ramo do conhecimento científico, desde as
ciências naturais às ciências sociais, existem organizações que reúnem um
grande número de especialistas que são responsáveis por estabelecer padrões
metodológicos, critérios específicos, procedimentos éticos etc. Isso tudo é essencial
na coleta e análise das informações que podem se transformar em números. É o
acúmulo de conhecimento prévio que dá confiabilidade ao que os cientistas
afirmam e, ao mesmo tempo, permite a descoberta do novo.
Outro elemento necessário para o progresso da
ciência (sem mencionar criticamente seu uso pelo capitalismo) é a existência de
uma padronização de procedimentos e critérios em escala internacional. Dois são
os motivos básicos para isso: o primeiro é a garantia de que aquele estudo
seguiu padrões rígidos e que resultou de um conhecimento robusto sobre o tema.
O outro motivo é que isso torna possível comparar entre si as informações e
descobertas feitas nos mais diversos pontos do planeta.
Semana passada, vimos aquele que era o maior estudo
internacional sobre Covid-19 ser “despublicado” de uma das principais revistas
médicas do mundo, a Lancet. O motivo: os padrões mínimos de conduta científica
na coleta dos dados nos diversos países não foram assegurados. Não há garantias
de que aqueles números “falavam” a verdade. Portanto, três dos quatro autores
solicitaram a retratação do texto.
Toda essa discussão nos leva ao seguinte
questionamento: qual o interesse do ministro interino da Saúde, um General da
ativa do Exército, na mudança da metodologia de registro e divulgação dos dados
sobre a Covid-19 no Brasil? O leitor desavisado pode achar que é birra de
Bolsonaro com o Willian Bonner.
Contudo, esse governo mostra algo muito pior: parece
que estão com saudade do obscurantismo típico da era militar, quando os números
diziam o que se queria e os mortos e desaparecidos sequer se tornavam dados.
Talvez por isso há tantos milicos lá...
[i] Professor
do Departamento de Economia da UFPB e Coordenador do PROGEB – Projeto
Globalização e Crise na Economia Brasileira. (www.progeb.blogspot.com; lucasmilanez@hotmail.com).
Colaboraram os pesquisadores: Daniella Alves, Ingrid Trindade, Matheus Quaresma
e Monik H. Pinto.
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