quarta-feira, 10 de junho de 2020

Os números não mentem... Será?


Semana de 01 a 07 de junho de 2020
  
Lucas Milanez de Lima Almeida [i]

Se uma pessoa fosse questionada sobre quais as principais formas de mentir, certamente a resposta seria: através da linguagem escrita ou falada. No caso do Brasil, isso se daria através da linguagem que se convencionou chamar de “português”. Seria possível enumerar as mais diversas maneiras de usar as palavras para contar uma mentira. Entretanto, a coisa muda quando questionamos as chances dos números mentirem.
Não é difícil de ouvir por aí que os dados não mentem. Está no senso comum. A ideia de que os números são “frios” e isentos de uma carga “ideológica” também é bastante difundida entre muitos cientistas sociais. Contudo, a coisa não é bem assim.
Os algarismos arábicos (os números de 0 a 9 e suas combinações) nada mais são do que parte de uma linguagem que expressa determinada coisa do mundo real. Por exemplo, se buscarmos o significado da palavra casa, no Google, o primeiro que vai aparecer é: “edifício de formatos e tamanhos variados, de um ou dois andares, quase sempre destinado à habitação”. Esse é um exemplo de como uma linguagem, o português, é utilizado para nos comunicarmos. Agora, se quisermos tratar de mais de uma casa, unimos ao português uma outra linguagem: a linguagem matemática.
Essa linguagem, porém, não se limita à representação imediata de coisas concretas. Ela também serve para representar determinadas mudanças ou padrões dessas coisas. Por exemplo, tal como nossos professores do ensino infantil ensinaram: se temos cinco maçãs e comemos duas, com quantas ficamos? Pela linguagem matemática, temos: 5 – 2 = 3. Poderíamos dificultar um pouco mais os exemplos, mas deixa para outra oportunidade.
O que importa é entender que, de fato, os números são uma parte daquilo que chamamos de linguagem matemática. Contudo, como toda representação da realidade, ela pode ser enganosa. A questão é: como saber se os dados que são fornecidos oficialmente por um governo ou entidade internacional, por exemplo, condizem com a realidade ou não? A resposta é complexa e só a ciência pode dar...
Em cada ramo do conhecimento científico, desde as ciências naturais às ciências sociais, existem organizações que reúnem um grande número de especialistas que são responsáveis por estabelecer padrões metodológicos, critérios específicos, procedimentos éticos etc. Isso tudo é essencial na coleta e análise das informações que podem se transformar em números. É o acúmulo de conhecimento prévio que dá confiabilidade ao que os cientistas afirmam e, ao mesmo tempo, permite a descoberta do novo.
Outro elemento necessário para o progresso da ciência (sem mencionar criticamente seu uso pelo capitalismo) é a existência de uma padronização de procedimentos e critérios em escala internacional. Dois são os motivos básicos para isso: o primeiro é a garantia de que aquele estudo seguiu padrões rígidos e que resultou de um conhecimento robusto sobre o tema. O outro motivo é que isso torna possível comparar entre si as informações e descobertas feitas nos mais diversos pontos do planeta.
Semana passada, vimos aquele que era o maior estudo internacional sobre Covid-19 ser “despublicado” de uma das principais revistas médicas do mundo, a Lancet. O motivo: os padrões mínimos de conduta científica na coleta dos dados nos diversos países não foram assegurados. Não há garantias de que aqueles números “falavam” a verdade. Portanto, três dos quatro autores solicitaram a retratação do texto.
Toda essa discussão nos leva ao seguinte questionamento: qual o interesse do ministro interino da Saúde, um General da ativa do Exército, na mudança da metodologia de registro e divulgação dos dados sobre a Covid-19 no Brasil? O leitor desavisado pode achar que é birra de Bolsonaro com o Willian Bonner.
Contudo, esse governo mostra algo muito pior: parece que estão com saudade do obscurantismo típico da era militar, quando os números diziam o que se queria e os mortos e desaparecidos sequer se tornavam dados. Talvez por isso há tantos milicos lá...

[i] Professor do Departamento de Economia da UFPB e Coordenador do PROGEB – Projeto Globalização e Crise na Economia Brasileira. (www.progeb.blogspot.com; lucasmilanez@hotmail.com). Colaboraram os pesquisadores: Daniella Alves, Ingrid Trindade, Matheus Quaresma e Monik H. Pinto.

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