quinta-feira, 5 de novembro de 2020

A autonomia do BC

Semana de 26 de outubro a 01 de novembro de 2020

 

Lucas Milanez de Lima Almeida [i]

 

O debate sobre a atuação do Banco Central não é nenhuma novidade. Desde que o neoliberalismo emergiu, as discussões sobre a atuação do BC assumiram um papel de destaque. Contudo, não iremos fazer uma reconstituição histórica do tema. O que queremos é entender o porquê dele ser tão recorrente. Afirma a teoria que a luta de classes se dá em três níveis: econômico, político e ideológico. No debate sobre o BC encontramos os três elementos o que justifica sua importância.

A luta econômica se manifesta no fato de que o BC é uma instituição que interfere na atividade econômica de uma fração bem específica da burguesia: aquela que ganha dinheiro através da negociação de capitais em suas diversas formas. Assim, o BC tem o poder de balizar os ganhos das instituições bancárias e financeiras na hora de emprestar ou usar o dinheiro que tomam emprestado das pessoas, de outras empresas ou do Estado. Em outras palavras, o BC tem o poder de interferir no “ganha pão” desta fração da burguesia. A luta política no BC se manifesta na forma de atuação e, consequentemente, na institucionalização das regras que regulamentam a atividade econômica das instituições bancárias e financeiras. Além disso, o BC é a instituição responsável pela condução das políticas monetária e cambial. Já a luta ideológica no BC se traveste de argumento técnico-científico. Em texto recente, pesquisadores mostraram que, entre 1994 e 2016, não é possível afirmar que o BC foi dirigido apenas por membros do setor financeiro privado ou servidores públicos (link). Três faculdades de economia também foram importantes fornecedores de quadros ao BC: USP, FGV-RJ e PUC-RJ.

De uma forma geral, o que parece ocorrer no Brasil é o seguinte. Há uma luta científica, onde o melhor argumento “técnico” justifica a atuação do BC e suas regras. A partir disso, estabelece-se o jogo no campo político. Como consequência, há resultados econômicos que, por acaso, beneficiam A ou B. Contudo, o mesmo trabalho já citado mostra como houve uma espécie de recrutamento preferencial em determinadas instituições públicas e privadas. Isto significa que há pouca variabilidade de ideias na hora de se escolher a direção do BC. Não coincidentemente, há recorrente unanimidade nas decisões dos membros do Comitê de Política Monetária (Copom), por exemplo. Em 2005, Paulo Nogueira Batista Jr. já chamava a atenção para a unânime decisão de elevar a Selic para 19,75%. Por sua vez, segundo Ricardo Barboza e Bráulio Borges, nos últimos 9 anos, houve unanimidade nas decisões do Copom em 91% das reuniões.

O debate de ideias, de fato, não está havendo. Há o completo predomínio das concepções que se coadunam com o receituário neoliberal. No âmbito econômico, por sua vez, não há claros sinais de que esteja ocorrendo alguma transformação que possa ameaçar o tamanho da fatia que o setor financeiro abocanha da renda nacional. Poderíamos especular que o PIX e o Open Banking pudessem significar isso. Mas é improvável. Ao invés de implodir o setor, isso representa uma redistribuição dos ganhos entre a burguesias bancária e financeira.

Há, contudo, a constante ameaça de que a luta no plano político possa se impor e tomar as rédeas da atuação do BC. Recentemente aconteceu no Governo Dilma. A reação contrária de grande parte do setor financeiro foi categórica. Claro, ela usou as instituições públicas para forçar uma queda dos juros bancários. Também ordenou que caísse a taxa Selic. Influenciou, assim, o “ganha pão” do setor. Isto é que está por trás dos projetos que visam garantir a autonomia/independência dos BCs: livrar os dirigentes da instituição, (pseudo) cientificamente escolhidos, da influência política de um presidente qualquer que possa atrapalhar os ganhos econômicos do setor.

O problema é que se esse presidente for eleito com um projeto referendado pela população, mas que desagrada a direção do BC, quem deve ter mais poder, o presidente da República ou do Banco Central? Aliás, o que deve prevalecer: os interesses gerais da população ou os interesses das burguesias bancária e financeira?


[i] Professor do Departamento de Economia da UFPB e Coordenador do PROGEB – Projeto Globalização e Crise na Economia Brasileira. (www.progeb.blogspot.com; lucasmilanez@hotmail.com). Colaboraram os pesquisadores: Ingrid Trindade, Guilherme de Paula, Monik H. Pinto e Daniella Alves.

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