quarta-feira, 31 de maio de 2023

Por que “neoindustrialização”?

Semana de 22 a 28 de maio de 2023

 

Lucas Milanez de Lima Almeida [i]

 

No último dia 25 de maio vimos algo que há tempos não acontecia: o presidente e o vice-presidente da República se juntando para defender o papel da indústria na dinamização da economia brasileira. Isto foi feito em um artigo de opinião assinado por Lula e Alckmin no jornal “O Estado de São Paulo”.

Dentre outras coisas que chamaram a atenção, destaca-se o termo oficialmente adotado: “neoindustrialização”. Não tardou para muitos “analistas do mercado” criticarem e desqualificarem as ideias. Para eles não há nada de “neo”, mas apenas a velha e indevida (na opinião deles) tentativa de se reeditar a industrialização do passado. Será?

Uma das características fundamentais da organização industrial no século XX, quando o Brasil se industrializou, era que a instalação de grandes empresas atraía para seu entorno um conjunto complexo de fornecedores e clientes. Assim, a produção industrial tendia a gerar um forte crescimento integrado e ramificado, trazendo o “progresso” para determinadas regiões.

Por sua vez, ao se expandirem para outros países, as empresas multinacionais reproduziam um mesmo padrão de organização, onde prevalecia essa integração da produção, a priorização do mercado local como destino dos produtos e, por isso, a adaptação aos fornecedores e às necessidades de cada localidade onde se instalava. Este padrão ficou conhecido como indústria multidoméstica, onde as empresas se expandiam replicando em suas filiais a essência das estratégias originadas nas matrizes.

Outro elemento que vai diferenciar a velha e a nova industrialização é o paradigma tecnológico dominante em dado momento histórico. No século passado, as empresas que dominavam as tecnologias metal-mecânica-química eram aquelas com maiores vantagens sobre as demais. O motivo é que as forças produtivas mais avançadas e lucrativas estavam baseadas nessas tecnologias.

Nesse contexto, para que a industrialização pudesse ocorrer por aqui, o Brasil precisava criar as condições para a instalação de empresas nacionais e multinacionais. Ou seja, era preciso extrair e beneficiar matérias-primas minerais, produzir energia, desenvolver infraestrutura, etc. Por falta e (muitas vezes) desinteresse do capital privado, o Estado assumiu o papel de investidor direto e provedor de grande parte desses recursos. Ao mesmo tempo, o setor público atuou como coordenador (via planos e projetos) e financiador (via bancos públicos) dos investimentos.

A questão é que nem o padrão de organização industrial dominante e nem o paradigma tecnológico são mais os mesmos, desde a década de 1970. A indústria multidoméstica foi substituída pelo padrão baseado em cadeias globais de valor (CGV). Por sua vez, possibilitando o surgimento deste padrão e se desenvolvendo junto com ele está o paradigma das tecnologias da informação e comunicação (TIC).

Como sabemos, o Brasil adentrou de maneira passiva e superficial nesta nova fase da industrialização, na medida em que nossa adaptação às CGV foi liderada pelas empresas estrangeiras e nossa inserção se deu como fornecedores de produtos primários. Além disso, também não internalizamos a produção e desenvolvimento de produtos ligados às TIC. Uma das causas disto é que, desde os anos 1990, os grupos que comandaram o Estado brasileiro não viam na indústria um setor chave para a economia. Por isso, não fizeram políticas efetivas em prol de um amplo desenvolvimento industrial.

Para piorar, como a economia é dinâmica, há cada vez mais indícios do surgimento de uma reconfiguração nas cadeias de valor, fenômeno que vem sendo chamado de “nearshoring”, “friendshoring” e “re-shoring”. Por outro lado, as questões climáticas têm imposto uma agenda que pode levar a um novo paradigma tecnológico, o da “economia verde”.

Longe de ser a reprodução do passado, a “neoindustrialização” é necessária para alcançarmos os atuais padrões produtivos internacionais e estarmos preparados para os próximos. Para isso, o Estado deve atuar de forma direta, seja investindo, coordenando ou financiando novas atividades. Resta saber se a burguesia brasileira vai ter interesse nesse projeto, afinal, vivemos no capitalismo e ela é quem vai ser a grande beneficiada.


[i] Professor do DRI/UFPB, PPGCPRI/UFPB e PPGRI/UEPB. Coordenador do PROGEB (@progebufpb, www.progeb.blogspot.com; lucasmilanez@hotmail.com). Colaboraram os pesquisadores: Miró Tosaka, Valentine Moura, Thomaz Cisneros, Lucas Santos e Gustavo Figueiredo.

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quinta-feira, 25 de maio de 2023

Remando contra a maré

Semana 15 a 21 de maio de 2023

 

Nelson Rosas Ribeiro[i]

           

A situação internacional continua a agravar-se. Nos Estados Unidos já foi criada uma nova expressão, “Polycrisis”, para designar o atual quadro. Não temos só uma crise, temos um conjunto delas que se expandem em vários terrenos. São referidas as crises na saúde (a pandemia), a desestruturação das cadeias produtivas globais, as tensões geopolíticas que levaram à guerra, as disrupções tecnológicas, a crise financeira etc. Já temos falado sobre isto, e como este conjunto de fenômenos dificulta a análise da evolução do ciclo mundial. Torna-se cada vez mais uma opinião consensual a aproximação de uma grande crise internacional e os economistas avaliam em 65% a probabilidade de ela ocorrer. A inflação resiste em ceder apesar de todos os Bancos Centrais (BCs) continuarem a subir os juros de referência, mesmo nos EUA onde a situação, para espanto geral, é ainda mais grave, diante da possibilidade de ser decretado um calote na dívida pública. Em 19 de janeiro o governo atingiu o teto do endividamento permitido, que é de US$32,4 trilhões. O escândalo ainda não estourou porque o Federal Reserve (Fed), BC americano, vem realizando uma série de manobras contábeis para esconder o fato. Os republicanos, que têm maioria no Congresso, não querem aprovar um aumento do teto e propõem uma redução das despesas com exceção das militares. O impasse está criado e tende a agravar-se.

A ação dos bancos centrais perdeu a sua eficácia. Todos sobem os juros, mas a inflação não cede, para surpresa e decepção geral. Afinal, a teoria não afirma que esta é a solução? A ideologia econômica professada por eles é tão fanática que não podem admitir que o problema está exatamente aí: a teoria está errada. Tenta-se desenvolver novas explicações. A mais usada no momento é a de que se passou ao estado de “dominância fiscal”. Isto ocorre quando a situação é tal que a política monetária, instrumento principal dos BCs, perde a eficácia diante da política fiscal. Vários seminários têm sido realizados para discutir o assunto como o promovido na sexta-feira passada (9) em São Paulo, com a participação de ilustres personalidades como Pedro Malan, Pérsio Arida, Roberto Campos Neto (presidente do BC), Roberto Setúbal (Itaú), Octavio Lazari Jr (Bradesco), Gabriel Galípolo etc., além de figuras internacionais como Agustin Carsters, dirigente do Banco de Compensações Internacionais BIS, Tiff Macklem, presidente do Bank of Canada etc. Após muitos debates, apenas concluíram que a política monetária está perdendo sua eficácia. Pressionado por alguns participantes Campos Neto, depois de reconhecer que a economia e o mercado de trabalho não desaceleram e que a inflação demora a cair desculpou-se afirmando que a política de juros altos não é sabotagem ou capricho do BC.

Em outra conferência promovida pelo Federal Reserve de Atlanta nos EUA, o presidente regional Raphael Bostic reconheceu que os EUA atravessam um período de incerteza justificando com os mesmos argumentos que caracterizam a “Polycrisis”. Apesar disto afirmou que o Fed não pretende reduzir os juros. Janet Yellen, secretária do tesouro dos EUA, afirmou que “o tempo está se esgotando para evitar a catástrofe”. A difícil situação dos EUA já está provocando o abandono do dólar nas relações comerciais internacionais e a substituição da moeda americana, como lastro, pelos BCs de todo o mundo. O dólar representava 71% das reservas mundiais de todos os BCs, em 1999. Hoje ele representa apenas 58%, sendo substituído pelo Renmimbi (chinês) 25% e o Euro 20,5%. Esta situação tende a se agravar diante das ações dos BRICS e do Banco dos BRICS. Justas são as propostas do governo Lula sobre o tema.

Mas a situação internacional degrada-se em outras regiões do mundo. O tão esperado crescimento da China vem perdendo força e a locomotiva da União Europeia, a indústria da Alemanha, também desacelerou.

Nesta atmosfera pesada, difícil é a missão do governo de promover o desenvolvimento do país, além de defender a democracia, tendo ainda de enfrentar sabotagens de todo tipo vindas de um congresso reacionário, uma burguesia atrasada, uma imprensa vendida e um bando de loucos terroristas.


[i] Economista, Professor Emérito da UFPB e Vice Coordenador do Progeb – Projeto Globalização e Crise na Economia Brasileira; nelsonrr39@hotmail.com; (www.progeb.blogspot.com). Colaboraram os pesquisadores: Guilherme de Paula, Valentine de Moura e Lucas Tiago de Santos.

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quinta-feira, 18 de maio de 2023

O lugar da ciência econômica na luta de classes

Semana de 08 a 14 de maio de 2023

 

Lucas Milanez de Lima Almeida [i]

 

Com outras palavras, um velho barbudo que vivera no Século XIX disse que a luta de classes se dá em três níveis distintos: o econômico, o político e o ideológico. Cada um dos níveis tem suas peculiaridades, sendo que um deles é a base dos demais.

Antes de mais nada, uma classe é definida como um agrupamento de pessoas que se assemelham entre si pelos seguintes fatores: posição que ocupa na organização do trabalho em um dado sistema produtivo historicamente determinado; propriedade (ou não) dos meios de produção; grandeza e modo como se apropriam da riqueza social.

Como o leitor pode deduzir, isso está diretamente associado às condições de produção e de apropriação da riqueza em determinado momento histórico. Assim, essa classificação é de ordem econômica e estabelece a divisão fundamental entre as classes sociais. No capitalismo, a mais famosa divisão é entre capitalistas e trabalhadores, sendo que a disputa entre eles pela apropriação da riqueza é a luta de classes em nível econômico. Através dos sindicatos (patronais e laborais), esta luta existe porque cada grupo busca aumentar sua fatia da riqueza social.

Dentro dessas “grandes classes” há diversas subdivisões. Banqueiros, por exemplo, se diferenciam dos Comerciantes e dos Industriais pela forma como contribuem para o funcionamento do capitalismo e, por isso, se apropriam da riqueza de forma diferente. Mesmo dentre os Industriais há as mais diversas atividades, com suas características próprias. Isto significa que, frequentemente, há conflitos entre as frações da mesma classe social na hora de se apropriarem de sua parte da riqueza. Por exemplo, quanto maiores os juros, maior a riqueza apropriada pelos banqueiros. Porém, menor é o lucro dos demais capitalistas que precisam de crédito para manter seus negócios.

Na política, a luta de classes se dá em outro nível. O elemento econômico é a base e dele surge a necessidade da disputa política. Na medida em que os integrantes de uma classe social (e suas frações) vão construindo sua consciência sobre si, as lutas individuais vão se tornando coletivas e se tornando lutas gerais da sociedade. Essas lutas são travadas tanto na estrutura que vai se institucionalizando (Estado, governo, partido etc.), quanto em outras ações coletivas organizadas (movimentos sociais, ONGs etc.). Como exemplo mais explícito da disputa institucionalizada temos a Lei da Usura, de 1933. Ela impôs o limite de 12% para a taxa de juros brasileira. Ela só caiu no início da década de 1990, quando a indústria perdeu o papel de principal setor da economia para os bancos e para o capital financeiro. Nessa linha, as reformas e leis recentes têm a mesma essência. Institucionalizadas através da política, elas garantem ganhos econômicos para a classe capitalista e/ou alguma(s) das suas frações: trabalhista, previdenciária, arcabouço fiscal, independência do banco central, marco do saneamento etc.

Em último nível, temos a luta de classes no âmbito ideológico. Aqui, a luta se dá no campo das ideias, através da construção do conjunto de crenças que formam a consciência dos indivíduos sobre cada classe, seja a sua ou as demais. Quando uma pessoa pertencente a uma classe se alinha ideologicamente a outra, a isto chamamos de alienação de classe (defender os interesses de uma classe, não faz uma pessoa pertencer a ela). Na prática, vários são os palcos dessa disputa: desde o cultural até o científico.

Pode não parecer, mas a ciência, sim, é um palco da luta de classes. Não é por acaso que o desenvolvimento de agrotóxicos e transgênicos é mais pesquisado do que a produção orgânica. Não é por acaso, também, que as teorias econômicas que norteiam as decisões do Banco Central são aquelas que se alinham aos interesses do mercado financeiro. Por mais que uma área do conhecimento, uma teoria ou um método de análise pareçam “neutros” e “técnicos”, a escolha do que será pesquisado ou considerado “adequado” resulta de decisões com fins econômicos bem delimitados. As teses desenvolvimentistas foram adequadas aos interesses dos industriais no século passado. O monetarismo de Chicago tem sido adequado ao setor financeiro desde os anos 1980.

A ciência econômica sempre teve a função de legitimar as medidas estatais que atendem os interesses de determinada classe social, dando-lhes a aparência de decisão puramente técnica. Além disso, por ser restrita a poucos conhecedores, a ciência econômica também serve para excluir as massas da luta pela apropriação da riqueza.

Como economista, tenho a obrigação de deixar isto claro.


[i] Professor do DRI/UFPB, PPGCPRI/UFPB e PPGRI/UEPB. Coordenador do PROGEB (@progebufpb, www.progeb.blogspot.com; lucasmilanez@hotmail.com). Colaboraram os pesquisadores: Guilherme de Paula, Lucas Santos, Thomaz Cisneros, Letícia Rocha e Raquel Lima.

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quinta-feira, 11 de maio de 2023

As expectativas em um mar de lama

Semana 01 a 07 de maio de 2023

 

Nelson Rosas Ribeiro[i]

            

A equipe econômica do governo continua sua pregação otimista sobre crescimento. Desta vez foi o ministro Hadad que deitou discurso anunciando que “Estamos no caminho de deixar o Brasil pronto para decolar”. Continua confiando na aprovação do arcabouço fiscal e que o Congresso aprovará outras medidas propostas pelo governo. Apesar das duas derrotas impostas pelo parlamento, a equipe do governo segue em frente. Parece que uma das características dos ministros de Economia de todos os governos é a mentira. Todos acreditam na furada afirmação Keynesiana de que o crescimento é resultado dos investimentos dos empresários, que dependem das expectativas que eles têm. Os ministros pensam que, com as mentiras, conseguem convencer os empresários que tudo vai bem. Assim eles formam “expectativas positivas” e começam a investir e daí vem o crescimento. Pensam que os movimentos da economia são comandados pela vontade dos homens, empresários individuais ou no comando do Estado.

No momento acreditam que com o aumento do salário-mínimo serão injetados na economia R$9,5 bilhões e com a mudança da faixa do imposto de renda outros R$3,4 bilhões animarão o consumo. Com efeito esta injeção de recursos será um estímulo ao consumo, mas temos na contramão os desestímulos causados pelas altas taxas de juros lideradas pela Selic de 13,75%, que o BC teimosamente manteve em sua última reunião, apesar de todas as pressões e manifestações dentro e fora do governo.

Para acalmar o agronegócio criou-se um novo crédito para financiamento de máquinas agrícolas e das exportações, depois da desfeita na Agrishow de Ribeirão Preto, quando os promotores convidaram Bolsonaro para a abertura e desconvidaram o ministro da Agricultura, o que fez com que o governo não se fizesse representar na feira.

No panorama político as coisas também não estão fáceis. Lula terá de ter muita habilidade para negociar com o Congresso reacionário, com um centrão corrupto e enfrentar uma bancada bolsomínia numerosa que envidará todos os esforços para criar todo tipo de dificuldades e de quem se pode esperar todo tipo de canalhice, como como as que já estão sendo feitas. Neste terreno temos a destacar a brilhante atuação do Ministro Dino que tem sido a grande estrela, desmoralizando os que se atrevem a provocá-lo.

 Em relação aos dados econômicos a situação é muito confusa e contraditória. O Banco Central (BC) divulgou o seu índice IBC-Br para fevereiro que é um indicador antecedente para o PIB. Para surpresa geral este índice mostrou um crescimento de 3,32%, para fevereiro, em relação a janeiro. Os serviços cresceram 1,1% e o varejo caiu 0,1%. A produção industrial também caiu 0,2%. Para o desemprego a taxa manteve-se em 8,8% e a renda média do trabalho cresceu. Diante do agravamento da situação internacional os analistas acreditam que esta situação tende a se agravar. Com efeito a guerra na Ucrânia mantém-se e amplia-se, com os países da OTAN cada vez mais histéricos e pressionando todos os países do mundo para os apoiarem. O Brasil continua sofrendo todo tipo de pressão para alterar sua posição de neutralidade.

Com o avanço das investigações sobre os atos de terrorismo praticados em Brasília e a apuração das responsabilidades, que envolvem militares de alta patente, a milicada comprometida arrepiou o pelo e as hienas começaram a mostrar os dentes. Torna-se cada vez mais claro que se estava tramando um golpe e que foi abortado pelo recuo do alto comando das Forças Armadas. Com as descobertas dos escândalos que envolvem contrabando de joias, apropriação do patrimônio público, falsificação de documentos, utilização de bens e imóveis do Estado em benefício próprio etc., a situação dos militares vai se tornando cada dia mais desmoralizante. É difícil pensar em um crime que a canalha no governo não tenha cometido. E o tsunami de lama atinge as forças armadas e os oficiais de alta patente. Até onde eles comprometerão sua dignidade em defesa de um reles “capitão” expurgado de suas próprias fileiras por incompetência?


[i] Economista, Professor Emérito da UFPB e Vice Coordenador do Progeb – Projeto Globalização e Crise na Economia Brasileira; nelsonrr39@hotmail.com; (www.progeb.blogspot.com). Colaboraram os pesquisadores: Guilherme de Paula, Valentine de Moura, Lucas Tiago de Santos e Miró Tosaka,

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quarta-feira, 3 de maio de 2023

O poder das grandes corporações (versão século XXI)

Semana de 24 a 30 de abril de 2023

 

Lucas Milanez de Lima Almeida [i]

 

Há pouco mais de um ano, o Ministério da Saúde lançou uma exposição intitulada “O controle do tabaco no Brasil: uma trajetória” (link). Com mais de 100 páginas, o material serve para fazermos um paralelo entre a exploração do tabaco, o poder da grande indústria do cigarro e a pressão que as Big Techs estão exercendo no Brasil hoje.

Utilizado pela humanidade desde tempos imemoriais, o tabaco esteve presente na cultura de diversas civilizações. Seu uso era dos mais variados e as pessoas mascavam, cheiravam rapé ou mesmo tinham um trabalho considerável para fumá-los em cachimbos. Porém, em meados do século XIX, nos EUA, inicia-se o processo de industrialização do tabaco. Com isso, como ponta do iceberg, surge o cigarro industrializado, o qual ganha sua primeira máquina de produção em massa em 1881.

As duas Guerras Mundiais, por sua vez, foram o grande “garoto propaganda” do produto. Além disso, a indústria do cigarro utilizou dois outros canais de marketing para seus produtos. O primeiro foram as artes, em todas as suas dimensões, mas, principalmente, o cinema. O segundo foi, por um lado, o financiamento de “estudos científicos” que não encontravam o mal do cigarro à saúde e, por outro, o financiamento (até hoje) de organizações não governamentais que parecem querer o fim do cigarro, só que não (link). Soma-se a isso toda pressão que essa indústria (ainda) exerce sobre políticos e bancadas em cada país onde atua, incluindo o Brasil. Particularmente aqui, isto se refletiu na forma como nós brasileiros regulamos a indústria do cigarro.

Pesquisas embrionárias da década de 1920 já levantavam suspeitas de que o cigarro faria mal à saúde. Porém, foi apenas nos anos 1950 que vieram à tona estudos mais robustos que comprovavam a relação entre o cigarro e o câncer. No Brasil, a primeira tentativa de legislar sobre o assunto veio em 1965, com uma lei que obrigava as empresas a alertarem seus clientes sobre os males que o cigarro traz à saúde. Em 1971 foi sancionada uma lei que proibia, parcialmente, a propaganda do cigarro em rádio e televisão. Já em 1973, um fato marcou a história da aviação: um avião da Varig saiu do Rio de Janeiro e caiu em Paris por conta de uma piola de cigarro que incendiou quase toda a aeronave. Mesmo assim, apesar do total de 123 mortos, apenas no fim da década de 1990 é que fumar em voos foi proibido no Brasil. Por sua vez, com o objetivo de proteger os “fumantes passivos”, fumar em locais fechados (com exceção dos “fumódromos”) só foi proibido em 1996. Contudo, isto só se tornou uma prática universal no país com um decreto de 2014.

O objetivo deste brevíssimo resgate foi traçar um paralelo com o que estamos vivenciando hoje, com a regulamentação das redes sociais. Tanto no Brasil quanto no resto do mundo, vemos os males que a internet (em geral) e as redes sociais (em particular) tem trazido, ao se tornarem espaços para reunião, organização e meio de aprendizado de diversos atos criminosos. Mesmo na chamada “surface web” (a internet que a maioria de nós usamos todos os dias) se encontra de tudo, até registros audiovisuais de crimes cometidos fora da internet (incluindo massacres a escolas e templos religiosos). Hoje, o maior canal de comunicação dessa gente são as redes sociais.

O que está se buscando fazer no Brasil (tal como já foi feito na Europa), é estabelecer “obrigações a serem seguidas por redes sociais, aplicativos de mensagens e ferramentas de busca na sinalização e retirada de contas e conteúdos considerados criminosos” (Fonte: Agência Câmara de Notícias). A lógica para se entender a importância disso é bem simples: se um usuário está cometendo algum crime previsto na legislação brasileira, que haja um protocolo estabelecido pelo Estado brasileiro para sua devida identificação. Hoje não há protocolos e as próprias empresas decidem o que fazer. Claro, isso frequentemente se torna um entrave à própria justiça brasileira.

Tal como no século XX, salvas as devidas proporções, estamos enfrentando uma luta política que reflete uma disputa fundamentalmente econômica. De um lado estão as grandes corporações monopolistas de um setor que busca sua “liberdade” para a explorar seu produto, mesmo que isto custe milhares ou milhões de vidas humanas (afinal, seu lucro é o mais importante). Do outro está a sociedade, que já compreendeu os males que este produto pode trazer. A história da indústria do cigarro está aí para nos inspirar e não deixarmos a regulamentação das redes para o fim do século XXI. Torço e luto para que o dinheiro e o obscurantismo não vençam de novo...


[i] Professor do DRI/UFPB, PPGCPRI/UFPB e PPGRI/UEPB. Coordenador do PROGEB (@progebufpb, www.progeb.blogspot.com; lucasmilanez@hotmail.com). Colaboraram os pesquisadores: Gustavo Figueiredo, Helen Tomaz, Thomaz Cisneros, Letícia Rocha e Raquel Lima.

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